Nunca imaginou que a cólera fosse manancial de forças negativas para nós
mesmos? A ausência de autodomínio, a inadvertência no trato com os
semelhantes, aos quais muitas vezes ofendeu sem refletir, conduziam-no
freqüentemente à esfera dos seres doentes e inferiores. Tal circunstância
agravou, de muito, o seu estado físico.
Depois de longa pausa, em que me examinava atentamente,
continuou:
- Já observou, meu amigo, que seu fígado foi maltratado pela sua
própria ação; que os rins foram esquecidos, com terrível menosprezo às
dádivas sagradas?
Singular desapontamento invadira-me o coração. Parecendo
desconhecer a angústia que me oprimia, continuava o médico,
esclarecendo:
- Os órgãos do corpo somático possuem incalculáveis reservas,
segundo os desígnios do Senhor.
O meu amigo, no entanto, iludiu
excelentes oportunidades, esperdiçado patrimônios preciosos da
experiência física. A longa tarefa, que lhe foi confiada pelos Maiores da
Espiritualidade Superior, foi reduzida a meras tentativas de trabalho que não
se consumou. Todo o aparelho gástrico foi destruído à custa de excessos de
alimentação e bebidas alcoólicas, aparentemente sem importância. Devorou-lhe a sífilis energias essenciais. Como vê, o suicídio é incontestável.
Meditei nos problemas dos caminhos humanos, refletindo nas
oportunidades perdidas. Na vida humana, conseguia ajustar numerosas
máscaras ao rosto, talhando-as conforme as situações.
Aliás, não poderia
supor, noutro tempo, que me seriam pedidas contas de episódios simples,
que costumava considerar como fatos sem maior significação. Conceituara,
até ali, os erros humanos, segundo os preceitos da criminologia. Todo
acontecimento insignificante, estranho aos códigos, entraria na relação de fenômenos naturais. Deparava-se-me, porém, agora, outro
sistema de verificação das faltas cometidas.
Não me defrontavam tribunais
de tortura, nem me surpreendiam abismos infernais; contudo, benfeitores
sorridentes comentavam-me as fraquezas como quem cuida de uma criança
desorientada, longe das vistas paternas. Aquele interesse espontâneo, no
entanto, feria-me a vaidade de homem. Talvez que, visitado por figuras
diabólicas a me torturarem, de tridente nas mãos, encontrasse forças para
tornar a derrota menos amarga. Todavia, a bondade exuberante de
Clarêncio, a inflexão de ternura do médico, a calma fraternal do enfermeiro,
penetravam-me fundo o espírito.
Não me dilacerava o desejo de reação;
doía-me a vergonha. E chorei. Rosto entre as mãos, q.ual menino contrariado
e infeliz, pus-me a soluçar com a dor que me parecia irremediável. Não havia
como discordar. Henrique de Luna falava com sobejas razões. Por fim,
abafando os impulsos vaidosos, reconheci a extensão de minhas
leviandades de outros tempos. A falsa noção da dignidade pessoal cedia
terreno à justiça. Perante minha visão espiritual só existia, agora, uma
realidade torturante: era verdadeiramente um suicida, perdera o ensejo
precioso da experiência humana, não passava de náufrago a quem se
recolhia por caridade.
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